sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Mais conhecimento, menos certezas


Mais conhecimento, menos certezas
23/1/2009
Michele Bicca Rolim,especial para o JC
É fato. O avanço tecnológico tem os dois lados da moeda. Trouxe novidades e facilidades ao nosso cotidiano. Entre elas, o acesso rápido à informação e a possibilidade que se tem de viajar para qualquer parte do mundo. Em contrapartida, também contribui para o efeito estufa, o distanciamento nas relações humanas e catástrofes como as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki no fim da Segunda Guerra Mundial e, 56 anos depois, a destruição das torres do World Trade Center, em Nova Iorque, em ato terrorista. A precariedade da existência humana também se tornou mais perceptível a partir das informações que se tem hoje sobre o fio das leis das físicas que sustenta o universo. O avião que sobrevoa a cidade pode cair sobre nossas casas. E se um meteorito cair no jardim? Disso resulta que, se antes as pessoas temiam principalmente as doenças incuráveis, agora seus medos e fobias ganharam o acréscimo de outros motivos.
Para falar sobre esse tema é preciso, primeiro, definir o que é medo e o que é fobia. São sentimentos diferentes, avisa o psiquiatra Rodrigo Grassi de Oliveira. Ele explica que "o medo é uma reação normal e faz parte da sobrevivência do ser humano; é uma resposta natural que visa proteger ao organismo de situações que de alguma maneira podem lhe causar danos". E completa, afirmando que "quando o medo começa a trazer um prejuízo funcional, ou seja, traz problemas em várias áreas da vida, passa a se chamar fobia, já não é mais uma reação de proteção. Prejudica, tornando-se patológico".
Quais os medos da sociedade contemporânea, em que se vive um paradoxo: à medida que o conhecimento aumenta, passamos a ter menos certeza. "Antes, a ciência tentava tornar o mundo o mais previsível possível, hoje ela produz diferentes riscos e introduz as incertezas no nosso dia-a-dia", observa o sociólogo Adão Clóvis Martins. Segundo ele, "em decorrência da globalização o conhecimento não pertence mais a um grupo reduzido de cientistas, porque as informações são compartilhadas e isso, de certa maneira, transforma o cotidiano das pessoas." Neste contexto surge o medo das inovações científicas tecnológicas, ou seja, muita gente teme o celular, tem medo de perder os dados, de colocar informações em um site ou num blog. "Todos esses pequenos medos modernos traduzem um medo maior, que é de os indivíduos não possuírem mais elementos que lhes assegurem o controle de suas vidas". O sociólogo exemplifica: "O texto pode desaparecer pela ação de um hacker ou as informações colocadas em um site podem ser utilizadas por outras pessoas".
Ameaça à necessidade de esquecer
Além dos motivos de medo apontados pelo sociólogo Adão Clóvis Martins, para o psiquiatra Rodrigo Grassi de Oliveira, a tecnologia trouxe mais um problema sério à sociedade moderna, que é o da perpetuação da memória e das lembranças. Atualmente há uma espécie de memória virtual na internet. Nela, o internauta pode ter acesso às preferências musicais, estilo de vida, principais atividades, amigos e fotos de qualquer indivíduo, basta que tenha orkut. Vídeos sem autorização são colocados no site Youtube, como o polêmico de Daniele Cicarelli com o namorado. Isso contraria, diz Grassi, um dos mecanismos de proteção do ser humano, extremamente importante: o esquecimento. "Imagina se as pessoas lembrassem tudo que fizeram na vida. Elas não conseguiriam fazer mais nada. Esquecer é essencial para que se possa seguir adiante. Antes, quando acontecia uma situação, o pai a contava ao filho, e assim por diante, mas chegava o momento em que a história terminava. Agora não acaba nunca".
Mas, para o sociólogo, esse ainda não é o maior medo da vida moderna. O que está na ponta, segundo ele, é o medo do espaço público. E ele alerta: "Se esse medo persiste, coloca em risco a própria possibilidade de vivermos em uma democracia". É onde Martins localiza uma contradição da sociedade moderna, que, segundo ele, "trazia uma grande promessa de espaços democráticos; a cidade foi pensada dessa maneira, como um espaço público de convivência e reconhecimento do outro, mas o que se percebe hoje é a negação desse espaço público, que é definido como perigoso, como ameaçador e inconveniente, porque nele muitas vezes você tem que conviver com o outro".
Para esse medo já surgiu um contraponto, que é a criação de espaços públicos privados, os chamados condomínios fechados e equipados por sistemas de segurança. Porém, mesmo que as fachadas das casas sejam de vidro, como se seus moradores quisessem compartilhar sua intimidade com o entorno, aqui não se pode falar em democracia, porque, explica Martins, "nos lugares homogêneos, você encontra com o outro não em uma situação democrática, porque o outro é o subalterno, o piscineiro, o jardineiro etc". E o que está por trás no abandono do espaço público? O sociólogo responde que é o temor da violência, que, no fundo, é o medo da morte. Ele acrescenta que "podemos entender a morte não somente como o fim de um sinal vital, mas também como perda do que o indivíduo possui e do que procurou acumular".
No Brasil, o índice de violência é alarmante. Isso ocorre, conforme o sociólogo, porque ao longo do século foi alimentada a crença de que o povo brasileiro era um povo bondoso e caridoso que coloca o coração na frente da razão. Esta visão encontrou contestadores. Um deles é Paulo Prado. No texto Retrato do Brasil, o autor questiona a alegria atribuída ao brasileiro e diz que, na verdade, o povo é triste, mas é capaz de rir de suas desgraças. Martins concorda. "De certa maneira, se você olhar os programas de televisão, grande parte do que nos faz rir são as nossas desgraças. Por exemplo, no programa Zorra Total (TV Globo), uma assistente social toca nesse que é um dos grandes temores no Brasil: o medo do desemprego e do rebaixamento social. Nesse quadro aparecem os novos pobres, a quem se ensina como devem se comportar em uma situação de pobreza. E o que faz o brasileiro? Ele ri".
A violência sempre foi algo negado oficialmente, embora sempre tenha existido. "Nosso grande problema é que, ao negarmos a existência da violência, não nos preparamos para enfrentá-la, ou seja, não criamos instituições políticas públicas nem estruturas psicossociais para fazer frente ao medo que sentimos por causa dela. Diferentemente da Europa, onde o medo é um elemento estrutural, portanto, as políticas que foram produzidas levaram em consideração a existência do medo e da violência". Segundo o psiquiatra Rodrigo Grassi de Oliveira, a falta dessas instituições faz toda a diferença, pois para que o medo não se torne uma fobia é preciso haver políticas de prevenção, como leis de proteção à infância, e políticas sociais que permitam que o indivíduo se sinta protegido.Outro fator que também contribui para que o indivíduo desenvolva um quadro patológico é a imprevisibilidade do risco, segundo o médico psiquiatra. Ele explica que todos nós estamos programados para funcionar de uma determinada forma e que, se um indivíduo é colocado numa situação imprevisível e não tem como se programar para enfrentá-la, isso por si só é estressante. Por exemplo: você está se sentindo protegido e de repente sofre um sequestro-relâmpago. Esse tipo de situação, totalmente imprevisível, deixa as pessoas vulneráveis.
Um agravante: o medo virou mercadoria. Virou instrumento de lucro. "Existe uma cultura do medo; ele revolucionou a indústria da segurança, que vai desde a fabricação de cadeados e chaves a sistemas cada vez mais sofisticados", afirma o sociólogo. Além disso, o medo alimenta uma sensação de diferenciação. O sociólogo diz como: "Já é símbolo de distinção, por exemplo, colocar um imenso portão na frente da casa, o que dá visibilidade à existência de um sistema eletrônico. Não é preciso ver a casa, mas quem vê o portão fica sabendo que há uma distinção de status nele".
Existe solução para os problemas da vida moderna? Se existe, quem é responsável por ela? Segundo Martins, quando se diz que o indivíduo é responsável e não se criam instituições coletivas, ele se sente abandonado. "Diferentemente de outras sociedades, em que a tarefa de solucionar os medos era coletiva, em nossa sociedade ela é individual, o indivíduo tem a obrigação de lidar e solucionar os próprios medos. Portanto, o coletivo não vale absolutamente nada. É por isso que os consultórios estão cheios e aumenta cada vez mais a venda de medicamentos para controlar a ansiedade."
Os grifos são de Rodrigo Nickel
http://jcrs.uol.com.br/noticias.aspx?pCodigoArea=42 . Site acessado em 23/01/2009 às 14h26min.